O obscurantismo da alma

Do ponto de vista natural, a história, como todo o labirinto, esconde seu caminho real e apresenta aos olhares dos homens uma multidão de caminhos falsos, que as ilusões, os erros e os vícios humanos consideram ilusoriamente como verdadeiros” Prof. Orlando Fedelis

Quero acreditar que a maioria das pessoas é movida por bons sentimentos, boas intenções e como conseqüência nobres ações que se refletem nos menores atos. Até aí nada demais. O problema está no conceito que cada um tem do que são bons sentimentos, a real motivação de suas intenções e o diâmetro de suas ações.

Li, por exemplo, que a Rainha da Inglaterra acredita que foi escolhida por Deus para reger o seu país. Tal egocentrismo é alimentado pelo orgulho e adoração que uma boa parte dos ingleses sentem e demonstram por sua alteza. Ademais, apesar de todo o avanço científico, muito bom inglês continua acreditando na superioridade intelectual de seu povo.  Pretensões que geram rivalidade com os franceses, conhecidos por sua intolerância e grosseria para com os estrangeiros.

Os norte-americanos, por sua vez, sentem-se os verdadeiros privilegiados de Deus, pensamento que uniu e guiou todo um povo à criação de uma nação, os Estados Unidos da América, a terra prometida.  Os ideais americanos são como leis divinas que impulsionam o povo para a difícil missão (ou pretensão) de permanecerem exemplos de virtude e protegerem o mundo de ameaças: o nazismo, o comunismo, os talibãs... o inimigo enfim da democracia e da liberdade.

"Todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, entre estes a vida, a liberdade e a procura da felicidade”. A beleza da declaração de independência dos EUA refletiu-se na "Declaração dos direitos do Homem e do Cidadão" redigida pelos  jovens e corajosos revolucionários franceses.  "Liberté, Igualité e Fraternité" foi um grito de revolta, mas foi também um grito poético, um apelo aos bons sentimentos que o ser humano pode inspirar e sentir como mostram os filósofos iluministas.

A Revolução Francesa foi um marco histórico e referência para futuras agitações políticas, porque os heróis que saíram de trás das barricadas e se jogaram à frente das armas, fizeram-no em nome de algo maior que  as desigualdades sociais da França do séc. XVIII. Fizeram-no em nome da liberdade individual de todo o homem oprimido.

O Feudalismo foi uma época em que o poder supremo da monarquia e da igreja dividiram a sociedade em homens e ratos. E como rato era tratado todo o pobre homem que não nascera com sangue nobre. Vivia  aquele coitado repudiado e jogado na mais profunda sujeira e miséria, sem direitos que não o de trabalhar até o fim da vida para satisfazer as regalias dos nobres, criaturas a quem Deus escolhera como representantes seus na terra, portanto seres divinos. Lenga-lengas seculares que geraram homens e monstros. Quem ousasse desafiar a vontade suprema do rei, a mais divina das criaturas, era a mando daquele, jogado e esquecido na prisão da Bastilha.

A Revolução Francesa abriu as portas para a modernidade no mundo inteiro e iluminou a mente dos homens. Foi, indiretamente, o combustível para as idéias futuras de Darwin, cujo avô era cria direta do novo conceito de liberdade. Erasmus Darwin deixou para o neto não só o exemplo do que fazer com a liberdade do corpo mas também da mente. O seu livro Zoonomia aonde defendia uma teoria evolucionista de características adquiridas foi largamente usado por Charles Darwin

Os princípios fundamentais da Revolução Francesa ecoam nas Constituições de todos os países democráticos, inclusive da Constituição brasileira. Direitos e garantias individuais e coletivas, assim como a limitação do poder do Estado na vida e dignidade do cidadão, onde não faltam disposições sobre a cobrança de tributos, direitos sociais, a preservação do meio ambiente, das crianças e adolescentes como o futuro do país. Temos assim manifestas e registradas as boas intenções da alma humana.

No entanto, as distâncias entre teoria e prática podem ser infinitas. Os registros visuais relegaram as belas promessas ao esquecimento. Em certos aspectos o cenário mundial, desde a queda da Bastilha, não mudou muito. Continuamos escutando pessoas em todo o canto do planeta reivindicando direitos divinos, se auto promovendo e denominando de escolhidos por toda e qualquer obscura razão, que pode ser religiosa, política ou econômica. Toda e qualquer condição motiva sentimentos de supremacia divinos. Extensa e histórica carreira política dá o direito “divino” a homens inescrupulosos de justificarem seus atos de pilhagem e abuso de poder, indivíduos usam a religião para imporem modelos de conduta questionáveis, ricos e pobres angariam seu lugar em paraísos idílicos junto de Deus.

O espírito dos bravos homens que alimentaram seus sentimentos de fé, coragem e honra em infinitas reuniões secretas, partindo depois para discursos desafiadores em praças públicas, abrindo os olhos da população martirizada e ignorante, chamando para uma luta que era de todos e de cada um, resgatando assim, às margens de leis que eles não podiam continuar aceitando, o direito de serem simplesmente tratados como homens, os heróis da Revolução francesa, parece ter sido enterrado de vez.

As chamas da ignorância e estupidez sobrepuseram-se, obscurecendo o espírito de honra e virtude, a nobreza da alma, a verdadeira nobreza; ignorância e estupidez que contrariam o espírito de igualdade e fraternidade que nos trouxe à era moderna e se refletem nas epidemias atuais: a violência das cidades, a fome no mundo, as doenças, a poluição, as desigualdades sociais, raciais, religiosas, econômicas e sexuais, a exploração do outro, os excessos dos dirigentes e a devastação do planeta.

Como se tal não bastasse perpetuamos a supremacia de realezas herdadas e nobrezas fajutas, autoadquiridas pelo poder econômico, o real poder, imperante e vencedor desde sempre. Tornamo-nos agora uma sociedade pandemônica consciente. Sabemos hoje que nunca vivemos uma era de trevas, e sim, afinal, uma era eternizada  do obscurantismo da alma.

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Comentários

  1. beautifully written. The balance of the good and the evil within each human is almost frightening and ironic. Our "societal personalities" are shaped by each individuals psyche and ego, in the end.

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