O tio Alexandre

Não faz muito tempo tive notícias do tio Alexandre, não da tumba, ou do além, já que ele se foi há uns bons anos, mas durante uma conversa em que se recordou a figura pândega. Grande, quase dois metros, forte, lembro de pensar que com ele parecia nunca haver problemas ou contrariedades.

Preservara-se em seu caráter, uma leveza infantil, uma alegria natural de menino, uma ingenuidade e confiança nos outros. Tio Alexandre era puro alto astral, daquelas pessoas a quem foram poupadas dificuldades e grandes desgostos durante a maior parte da vida. Não sei que idade teria. Não lhe vi marcarem os anos. Para uma garota os números em si não são importantes, a idade se mede pela aparência: ou é criança, ou jovem, ou velho, o máximo que pode haver é um “mais ou menos” confuso. Fazendo algumas contas rapidamente posso chegar a uns 60 anos. Por aí.

Não havia laços de sangue entre nós. O parentesco existia em função do casamento com uma tia avó. Foi somente aos 14 anos que o conheci, em Coimbra, logo depois que Portugal perdeu as colônias africanas. Até lá, tio Alexandre morava em Moçambique com sua família e nós em Angola. Havia uma convivência ocasional com o resto de sua família, dentro do que os compromissos e distâncias permitiam, mas de tio Alexandre eu só conhecera a fama. Cresci escutando histórias desmerecedoras, queixumes de mulheres, segredos revelados a boca baixa, coisa de família antiga, fofocas que com o tempo a gente acaba questionando e se convencendo que tem muito folclore, ou pedaços faltando, esquecidos, apagados no tempo.

Tio Alexandre tinha seu grupinho de baralho para esbanjar uns trocados, dividir as aventuras da juventude -, as conquistas femininas e discorrer sobre pequenas vaidades e falsos orgulhos - as conquistas atuais e os filhos. Mas era em meio à juventude que ele melhor se sentia, seu momento Popeye, virava o menino travesso dos velhos tempos. Dava cotoveladas leves para apontar discretamente a beldade passando, participava das brincadeiras irreverentes dos jovens sobrinhos, falava tontices e distribuía atenções, um trocadinho aqui e ali para os meninos não fazerem feio diante das pretendentes, ou não se sentirem diminuídos com os amigos. Eram atenções recatadas com sobras de pequenos gastos, o qual ele fazia vista grossa, apenas um gesto relevando a importância, arrumando logo assunto para desviar atenção e não causar embaraço. Oh sim, havia muita sensibilidade em tio Alexandre.

A vida inteira ele fora o filho e marido estróina, o pai ausente, mulherengo e esbanjador. Em nada ele via entraves. Se a mulher abria as rédeas, trocava olhares, tocava onde não devia, lá ia ele cair em lençóis alheios. O problema é que a mulher podia ser tanto a filha do amigo, como a amiga ou prima e até cunhada da esposa. Os gastos eram ilimitados, estouvados. Tudo em nome da diversão e do jogo. Pois é, o jogo. Outro grande problema na vida de Tio Alexandre. Assim como tudo em sua vida, não havia decisões sérias, pensadas, o que valia era o impulso momentâneo, a adrenalina. As preocupações, os cuidados com os filhos, a casa, os negócios ficavam por conta da esposa. Coisa séria demais para ele.

O tio Alexandre que conheci era um homem sem família, os quatro filhos viviam na capital, eram cheios de etiqueta, faltava-lhes a naturalidade do pai, de quem guardavam ressentimentos e vergonha. Naqueles tempos ele e minha tia estavam já separados. A Pensão Sta Cruz, seu ganha pão, fora um presente dela. As pessoas não entendiam esses cuidados, a consideração "desmerecida", aplidaram grosseiramente o jesto de "retardo mental" mas ninguém melhor do que a esposa para lhe conhecer a fragilidade. Titia chegou a visitá-lo antes da separação definitiva. Acredito que tenha sido aquela uma tentativa de reconciliação que nunca aconteceu. Lembro apenas que ela me levou para dormir no quarto, o mesmo que meu tio usava e onde foi colocada uma cama infantil antiga, de madeira pesada posicionada de forma a ficar paralela à grande cama de casal. Muitos anos depois entendi a estranha idéia.

Naquela época, tio Alexandre já se envolvera com a cozinheira da pensão, Tereza. Para os filhos foi mais um acinte ao nome da família. A mistura de pessoas ignorantes, sem modos, sem cultura, sem dotes com as ditas boas famílias era muito mal vista. Tereza era uma mulher de meia idade, com expressão de mártir. Tudo doía, naquela mulher. Suas conversas eram uma ladainha desagradável de dores e doenças, de ais e uis. Mãe solteira de um filho na idade militar, que já revelava gostos caros, como o hobby de montagem de maquetes que formavam cidades, dispondo de um cômodo inteiro para tal, em uma casa nos arredores da pensão. Sendo ali, na verdade, o pouso noturno e discreto de tio Alexandre.

Vim para o Brasil, deixando para trás essa e outras histórias. Não lembro se já saira de Portugal quando tio Alexandre recebeu uma herança fabulosa de uma velha tia solteirona, assim como também não lembro quando recebi a notícia de sua morte. Teresa virara há muito uma mulher rica, o dinheiro abrira a possibilidade para que seu rebento, Vitinho, fizesse um belo casamento, galgando assim o último degrau para o topo da sociedade conimbricense. Vira e mexe ainda me pergunto se Teresa conserva a cara de coitada que deu asas a tanta piada.

Foi um choque saber, somente esses dias, que tio Alexandre morreu na rua, vítima de um ataque de coração. Ele foi achado em meio a baldes de lixo com bilhetes de loteria que vendia pelas ruas. “Como assim?” Perguntei ingenuamente. Vitinho e a “coitada” da Tereza trataram de garantir sua ascensão vitalícia no mundo dos ricos, obtendo a assinatura do coitado em tudo o que era necessário para transferir os vultosos bens. Todo o dia Tereza botava o “velho bobo” (quantas vezes a escutamos referir-se dessa forma a tio Alexandre?), para fora de casa para vender bilhetes de loteria. Posso especular várias razões que levaram Tereza a tão vil e desumana ação mas o que importa agora?

A aparência de tio Alexandre no final, revelaram testemunhas, não era mais imponente. Magro e mal vestido, tremendo de frio no inverno, apregoava seus jogos, incitando os passantes a desafiar a sorte, em troca de uns trocados. Os poucos amigos que lhe restaram, muitos a quem ele pagara contas, acolhera de graça na pensão, retribuiam-lhe com um cafezinho, um cálice de aguardente para esquentar, jogar conversa fora, ressuscitar a eterna alegria de menino grande e bôbo que se foi deste mundo como um pobre velho.

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