“Cadê o Gabriel?”

gravidezSituações delicadas podem se tornar um embaraço social complexo. Imagine que você encontra um casal conhecido, cuja esposa está visivelmente grávida. Há uma radiância no olhar dos dois e uma ansiedade visível no tagarelar sem fim da feliz mamãe que fala do bebê como se ele já ali estivesse. E na verdade está não importa se é o primeiro,  segundo ou terceiro filho,  há  sempre

uma necessidade maternal de preparar a feliz chegada, cuidar do ninho, escolher um nome e criar até um rosto, uma identidade para o novo membro da família, que para a mãe é uma criança omnipresente.

Passado um ano você encontra o mesmo casal e claro faz a pergunta óbvia “Cadê o Gabriel?” O menino tão ansiosamente aguardado e que aquela altura já deverá estar perto do primeiro aniversário. A resposta é um silêncio constrangedor, uma troca de olhares rápida entre o casal e então o marido responde lacônico que eles perderam o bebê. A esposa olha o chão, encabulada, amarga, irritada, culpada, sentida... Uma mistura de emoções inexplicáveis que nem mesmo quem passa pela experiência pode expressar. Imagine-se o embaraço do interlocutor.

Eu já passei por ambas as situações e até hoje não gosto de falar do assunto. Também não conheço nenhuma mulher, que tenha passado por uma gravidez interrompida, sofrido aborto, voluntário ou involuntário, que não sinta algum mal estar em relação ao episódio. É algo que as mulheres preferem conversar apenas com quem já passou pela mesma experiência.

Mas porque decidi reviver a experiência? Há acontecimentos penosos que acabam virando comédias e o tempo e a mente, como uma defesa, se encarregam de resguardar a tristeza. No meu caso foi tudo muito rápido, um dia eu estava bem e no outro eu me encontrava no hospital sendo preparada para a cirurgia.

Naquela mesma semana eu passara pelo pré-natal e dois dias depois me encaminhei para a academia onde fazia hidroginástica. Como era de praxe passei pelo médico, pois só com o ok de um profissional eu poderia entrar na aula. Mas naquele dia tive uma surpresa, além dele não me liberar ainda insistiu que eu deveria sair dali imediatamente e ir direto para a obstetra que fazia o acompanhamento da gravidez. Lembro que inicialmente cheguei a rir. Era um jovem residente, com os olhos mais lindos que eu já vira, algo que eu não conseguia evitar pensar quando o encontrava, mas naquele dia acabei irritada com sua insistência. Finalmente ele me olhou nos olhos e disse com expressão grave: “Carla, eu posso afirmar com a maior segurança que tem algum problema com a criança.

E então ali estava eu no melhor quarto do hospital, sendo assistida por uma profissional rigorosamente selecionada para atender gente endinheirada, o que não era o meu caso. Sem vagas, aquele quarto vip era o único disponível. Enquanto me ajudava a vestir a camisola hospitalar sob o olhar preocupado de meu marido, a enfermeira foi falando. Não sabia o que eu tinha, dizia ela, só lhe foi passado que era uma emergência. Finalmente a encarei tentando me esforçar por corresponder à sua gentileza. Era uma mulher mais velha, cuja feição lembrava um cavalo simpático. Ela só queria fazer seu trabalho, que era também criar um clima de confiança e descontração com o cliente/doente. Nada como uma conversa para diluir nervosismos que, no meu caso, era evidenciado pelo tremor espasmódico do meu corpo que assim reagia aos pensamentos desconexos que varriam a minha mente.

A certa altura minha atenção foi aguçada. A enfermeira perguntava se eu tinha certeza da gravidez, porque naquela mesma semana uma mulher aparecera no hospital com um barrigão enorme, sendo que se tratava de um cisto uterino “E olha minha filha o seio incha, a mulher engorda e sente até uma coisa mexendo dentro dela como se fosse uma criança. Será que não é isso que você tem, porque às vezes o médico não fala logo...” a conversa não tinha fim.

- “Quem é mesmo o seu médico? A Dra. Ana? Hummm... você tá sabendo o que aconteceu com a equipe da Dra. Ana? Tá o maior bafafá aqui no hospital. Uma paciente dela morreu durante a cirurgia. Tão falando que foi erro do anestesista dela. Ele taí trabalhando como se nada tivesse acontecido e a família da mulher tá querendo entrar na justiça. Vem todo o dia no hospital querendo tirar satisfação e ele nem dá as caras.”

A essa altura eu sentia-me a própria Giulietta Masina gravando uma cena típica de Fellini. De que espécie de loucura estava eu participando? Seria aquela uma gozação macabra ou uma forma bem peculiar de acalmar um paciente prestes a entrar na sala de cirurgia, por sinal, para as mãos da mesma equipe médica que aparentemente matara um paciente. No desvario em que me encontrava eu desatei a rir histericamente. Meu marido no ápice do nervosismo, agravado com o papo insano e a minha tresloucada reação, queria ver a enfermeira pelas costas e tratou de enviá-la com modos bruscos no encalço da médica.

Tempos depois a lembrança daquela cena fílmica era um emaranhado de imagens, palavras, sentimentos e dúvidas: teria realmente acontecido ou a minha mente confusa e desnorteada criara um delírio onírico? Quando meu marido confirmou a veracidade, caímos ambos na risada, finalmente relaxando da tensão, do silêncio e insegurança que o triste episódio causara. Assim quando precisamos enfrentar a situação embaraçosa de responder “Cadê o Gabriel?” não tive dúvidas, falei sem dramas, contando na seqüência o cômico episódio, diluindo o embaraço costumeiro.

Traumas de gravidez interrompida

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